No encontro de Maria com Jesus na ‘Via Crucis’, podemos contemplar outras inúmeras mulheres que sofrem por seus cônjuges, filhos, irmãos, parentes e amigos.

Por Tânia da Silva Mayer* 

A Semana Santa é para os cristãos uma oportunidade ímpar para buscar a afinação das vidas com o seguimento de Jesus, num processo de maior aproximação do Reino de Deus e maior distanciamento daquilo que nos afasta do caminho do Mestre. Por isso, a liturgia é fecunda nos gestos, símbolos e palavras, a fim de favorecer o qualitativo salto na fé. Mas a piedade popular também desempenha importante papel para a educação da fé, desde que se busque o sentido profundo das ações que vão muito além de meros devocionismos de práticas exteriores sem relevância para a conversão.

Em muitos lugares é comum a realização dessas práticas de piedade popular durante a Semana Santa. Uma delas é a chamada Procissão do Encontro, realizada principalmente na quarta-feira santa. Nessa ação de piedade, costumam-se promover o encontro das imagens de Nosso Senhor dos Passos e de Nossa Senhora das Dores. Partindo de locais diferentes, os andores carregados por homens e mulheres encontram-se normalmente numa rua ou numa praça. O momento é acompanhado de cantos, orações e do sermão ou pregação de um presbítero ou de outro fiel. Tudo marcado por grande emoção, pois retoma-se o sofrimento de Maria ao ver o que as autoridades do povo fizeram ao seu filho e como o tratam pelas ruas de Jerusalém. Um encontro de dor.

É importante notarmos que os Evangelhos, tanto os Sinóticos quanto João, não apresentam nenhuma narrativa a respeito desse possível encontro de Maria com Jesus a caminho do calvário. Mateus e Marcos nos contam que, logo após a prisão de Jesus por delação de Judas, todos os discípulos o abandonaram e fugiram (cf. Mt 26,56b; Mc 14,50). Também eles nos dizem que diante da fuga dos discípulos, as mulheres que haviam estado com Jesus permaneceram distantes acompanhando todos os acontecimentos até a morte (cf. Mc 15,40; Mt 27,55).

Lucas não fala desse abandono dos discípulos, mas afirma que os conhecidos de Jesus mantinham-se distantes “e as mulheres que o haviam seguido desde a Galileia observavam tudo” (23,49). É Lucas quem vai narrar que “grande multidão do povo e mulheres chorando e lamentando-se por ele” (23,27) seguiam-no pelas ruas enquanto carregava a cruz. Segundo o autor, Jesus conversou com essas mulheres, consolando-as do sofrimento que sentiam pelas injustiças cometidas contra ele. Ele as teria dito: “Moradoras de Jerusalém, não choreis por mim; chorai por vós e por vossos filhos” (23,28). Logicamente, Jesus não quer incentivá-las a se manterem indiferentes frente às injustiças, mas quer fazê-las compreender que a desgraça maior não é o fato de Jesus cumprir o destino que lhe foi traçado pelos poderosos da religião e do império, mas a culpa pelas injustiças que continuam manchando mesmo as mãos mais bem lavadas e que faz com que vidas inocentes sejam torturadas e sepultadas dentro de ciclos de injustiças que parecem atingir a todos através dos séculos.

Como podemos ver, os Evangelhos Sinópticos não se preocuparam com o encontro de Jesus com sua mãe nesse caminho até a cruz. João também não se detém sobre os acontecimentos no percurso e situa a mãe de Jesus, o discípulo predileto e outras mulheres ao pé da cruz (cf. Jo 19, 25-27). Por isso, o encontro tal como o conhecemos na piedade popular não se encontra respaldado nas narrativas evangélicas. E pode ser muito perigoso dizer na fé aquilo que não está dito nas Escrituras e na Tradição.

Na esteira de Lucas, podemos sugerir que Maria esteve no grupo das “filhas de Jerusalém”, as moradoras que choram antecipando o luto que experimentariam depois da morte na cruz. Humanamente, não é possível imaginar que uma mãe se mantivesse indiferente aos filhos enquanto eles sofrem e caminham para a morte. Por isso, é fácil acreditar que, em algum momento, a mãe de Jesus encontrou-se com seu filho sem poder fazer algo para interromper a sentença injusta e o terrível destino que se aproximava. Sem dúvidas, um encontro de profunda dor. É projetando esse encontro de Maria com Jesus que também podemos estender nossa comunhão com tantas mulheres que se encontram com seus filhos, maridos, irmãos e pais nas ruas de nossas cidades, em agonia e dor ou já com os corpos mortos. Essas mulheres choram as dores das vidas inocentes dos seus que foram ceifadas pela maldade sistematizada em nossas relações sociais.

Ao final desse artigo, gostaria de lembrar mulheres que se encontraram com os corpos de seus filhos, filhas, esposos e esposas nas ruas do Rio de Janeiro, numa espécie de Via Crucis de dor e amargo sofrimento sob o obsequioso silêncio das autoridades e de todos nós: Bruna Silva, mãe do adolescente de 14 anos, Marcos Vinícius, morto com um tiro nas costas durante operação policial no Complexo de Favelas da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro, em junho do ano passado, enquanto ia para a escola de uniforme e com mochila nas costas. Também gostaria de recordar a Marinete da Silva e a Mônica Benício, respectivamente mãe e esposa da Marielle Franco, assassinada a caminho de casa, em março de 2018. Com elas também recordo a esposa do motorista Anderson Gomes, Ágatha Arnaus Reis, assassinado junto com a Marielle. Também estendemos a comunhão à Luciana Nogueira, esposa do músico Evaldo Rosa dos Santos, de 51 anos, morto na tarde do domingo, dia 7 de abril, quando o carro em que estava com a família foi metralhado com 83 tiros friamente disparados pelos homens do Exército Brasileiro, sem que nenhuma justificativa fosse apresentada até agora. Que as celebrações pascais façam de nós pessoas melhores, para sermos minimamente solidários com os que tombam ao nosso lado e diante dos nossos olhos.

*Tânia da Silva Mayer é mestra e bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE); graduanda em Letras pela UFMG.

Publicado originalmente em Dom Total